micro-ensaio indireto sobre Dia e Diário – da mentaliguística à prática.

Escrever sobre o dia que passou é um exercício fatídico, a princípio. É, por ora, passá-lo por diante dos olhos uma vez mais, cantá-lo os versos de sua própria trilha sonora uma vez mais. Caminhar despido de ações ao rememorá-las, cristalizá-las no tempo com seu respectivo significado. Tem algum? Se há, é porque foi verídico. Eficaz pretérito que se afirma, agora, ao afirmarmos: este dia já passou. E sua reserva, na memória ou na história, algo jamais vão.

Eles começam iguais, partem do despertar dos nossos olhos, seja na calma das manhãs ou na confusão noturna que se instala ao espetáculo do inesperado e surpreendente ato de acordar. Esperamos por isso? Conseguimos, ao menos, dormir? São partes inseparáveis dos nossos dias. Sua estrutura, portanto, é obscura, e está nas entrelinhas do que normalmente não se vê, está para além da janela de nossa alma – mas que se inicia ao retirarmos do brilho a cortina estendida. Metáforas e mais delas. É indissociável, também, o registro distante, imaginário, de cada momento, de cada verbo órfão das expressões mais comuns do cotidiano; são novas formas que concebemos para autodidatarmos nossa convivência com o exterior.

A existência, portanto, torna-se verídica ao nosso universo particular; passamos a refletí-la ao universo social numa construção íntima e compartilhada. Ao lançar os lençois de nosso corpo, sejam eles fruto do conforto ou da miséria, estamos renascidos para o tempo com a capacidade melhor elaborada de se respirar por uma vez mais, tentamos alcançar os nossos sonhos e fracassamos na maior parte. Esqueça-os. Estes são tímidos à realidade. Semelhantes às metáforas, a urgência é pela reflexão, em detrimento de algum rigor ou capricho de deter a fluência dos pensamentos que se escondem da existência – como quando é na vez de cerrarmos os olhos.

São inúmeras referências; versos, gírias pessimamente construídas, confusão e gaguejo dos resíduos acumulados na fala… A oralidade fez, outra vez, parte do meu dia. Dedico todo um parágrafo a uma espécie de louvor linguístico, pois que é aqui onde existo factualmente. A poesia é vista a qualquer momento, mesmo que não saibamos domá-la ou interpretá-la. É como uma vaga no cárcere dos estados: apesar da superlotação, hão de estar alí, disponíveis, para que veja, e, quem sabe, para que experimente detê-la. Deter uma vaga dentro do sistema carcerário é indesejável. Ser escravo da poesia, também.

Seguem os minutos e permanecemos divagando, apesar não assumirmos. Quais fonemas escondes no teu silêncio? São proibídos? São teus? E a tênue linha que te separava do monstro coletivo, hei de quebrá-la, dada sua frágil natureza? Sim. Pois que abres a boca, e isso também compõe mais uma das tuas próximas vinte e quatro horas. Alguns são incapazes de fixar o olhar por tanto tempo e o cessam, mas sonâmbulos existem para comprovar que, mesmo turva, a fala penetra na existência e faz parte dos nossos dias.

Chega o ócio e, por aqui, estamos cansados de tanto onanizar as representações quase invisíveis da rotina e o laboratório humano que a cerca. Voltemos a falar sobre o que se encerrou. A chuva veio como um triunfo à seca, como um brinde ao frío na terra da garoa, como um laço, de poder e deixar de, entre a civilização. Caiu forte por instantes, e também cessou. Contínuos passos guiam direções inimagináveis, e a minha, entretanto, tem um destino. Posso questioná-lo a ponto de causar um desvio, mas este ainda insiste, se mumifica, resiste.

Estamos depositanto demasiada esperança no destino? Somos remetentes ou destinatários? Estamos munidos de intenções como escâmbo, retorno? Fora isso, caminhar é um ato de sobrevivência. Ninguém vive parado, oras. Não precisamos de iscas para nos movermos, para retirarmos o peso do traseiro contra o sinônimo de apoio. Mesmo o mais preguiçoso dos sujeitos – este precisa se alimentar.

A vida é motriz para cada direção. No transporte público, independente dos picos às seis, ou como no conforto às duas. Os rostos, alguns calados, estavam em deslocamento obrigatório, seja por dever, ou por direito. Quando estava o trem vazio, pareciam calmos. Na hora mais agitada, houve desespero pelo lar, para negar o que havia se passado no esforço dos escritórios ou das oficinas de nossa força desgastada pela necessidade de ganhar tostões.

Eu, por bem, retornei, também. Estive em mais de um lar. Estive em mais de um conforto ou estresse. Pude ver diferentes emoções tomarem espaços em seus campos. Parece que, em meus dias, sou espectador, ou até mesmo coadjuvante. O protagonismo passa longe do meu interesse. Quando preconizado, foi exemplar. Não por aficção, mas por espírito, e talvez necessidade. Existe algo além de toda essa estruturação, que invalida, talvez, a prece por observar tudo que até então fora escrito e, anteriormente, óbvio, vivido.

Em um dos lares em que estive, houve um encontro especial. Foi onde deixei alguns sorrisos perdidos, outros roubados. Importante foi tê-los solto. Senti um zêlo especial e um carinho inigualável. Deixei-me envolver e ser envolvido, numa dança de braços que tornava uno alguns múltiplos. Recebia cada afago como um buquê repleto de flores ainda enraizadas no jardim. Era o ápice. Essa nuance tinha nome. Bem o sei, tanto que é a ela quem agradeço pelas cores mais vivas e claras. O céu permanecia cinza.

Agora, apenas acompanhado das estrelas e da poluição, é minha vez de voltar ao edifício do imaginário, sequestrado pelo sono e pela necessidade de enfrentar mais um dia. Agora, o culto ao passado é meramente representativo. Agora, o futuro se constrói brevemente. Agora, me preparo, mais uma vez, para a surpresa do novo dia. Agora, sabendo do que se encerrou, talvez saiba um pouco sobre o início, ou ao menos de seu modo.